sábado, 10 de outubro de 2009

BOSSA NOVA :Uma batida diferente


  1. Introdução

“Bossa nova mesmo é ser presidente

desta terra descoberta por Cabral ... “

A letra da canção, composta por Juca Chaves nos idos de 60 para fazer uma sátira ao governo “moderno” de Juscelino Kubitschek, exemplifica bem o sentido mais genérico do termo “bossa nova”: liga-se a novidade, modernidade, invenção recente, jeito diferente de fazer ou usar alguma coisa.

Na área musical, o termo Bossa Nova é usado, tipicamente, para designar um estilo musical que surgiu, na década de 50, no Rio de Janeiro.

É muito comum é associá-lo simplesmente ao ritmo, ou à batida - diferente, com certeza, de tudo que tinha sido feito antes - que se usa (caracteristicamente ao violão) para acompanhar uma melodia. Entenda-se que “antes”, aqui, tem como referência a gravação de Chega de Saudade (de Tom Jobim e Vinícius de Moraes) por João Gilberto em 1958.

Durval Ferreira e Maurício Einhorn, na música Batida Diferente, fazem referência à singularidade e à novidade desta “batida”, usando a imagem do coração batendo num ritmo diferente.

“Veja como bate engraçado o meu coração, assim...

É realmente sincopado, vem ouvir aqui... “

Mas se fizermos uma análise mais aprofundada, veremos que não é somente a originalidade rítmica a responsável pela definição da Bossa Nova como movimento estético. O que é, então, que caracteriza este estilo? Quais são os traços que o distinguem de qualquer outro? São questões que procuraremos responder ao longo deste trabalho.

A Bossa Nova incorpora diversos aspectos da linguagem do jazz, especialmente do be-bop (de concepção mais elaborada do que o jazz tradicional) e do cool jazz (cujos intérpretes eram músicos que tinham conhecimento técnico apurado, e que usavam um estilo contido e anticontrastante nas suas performances). Não por acaso, Rui Castro [1] começa a contar a história da Bossa Nova a partir da fundação do Sinatra-Farney Fã-Clube em 1949. Foi lá que muitos nomes hoje consagrados (incluindo Johnny Alf, João Donato, Paulo Moura e Doris Monteiro, entre outros) começaram a se reunir para ouvir e tocar num estilo “moderno” que viria a constituir o movimento da Bossa Nova.

Mais de meio século depois, consagrada internacionalmente, tendo superado todas as discussões entre apreciadores entusiasmados e críticos ferozes, a Bossa Nova conquistou a sua identidade, e hoje pode ser considerada um símbolo nacional brasileiro. Garota de Ipanema, de Tom e Vinícius, e Wave, de Tom Jobim, estão entre as músicas mais gravadas em todo o mundo; a música brasileira deixou de ser uma curiosidade exótica e passou a integrar o repertório dos músicos e dos ouvintes mais sofisticadas no mundo inteiro.

“A Bossa Nova, forma de expressão musical que se popularizou em meio a grandes polêmicas, adquiriu muito rapidamente sua estabilidade e maturidade de propósitos, com base numa militância anônima inicial, até a grande produção e consumo da fase profissinal posterior, quando se transformou num produto brasileiro de exportação dos mais refinados e requisitados no exterior.” [2]

Objetivo

Este trabalho tem por objetivo descrever a concepção estética inovadora que caracteriza o movimento da Bossa Nova, distinguindo-a dos outros gêneros dentro da música popular brasileira. Estas características se manifestam nos aspectos musicais (na melodia, na harmonia, no ritmo), nas letras e na interpretação.



Aspectos musicais

Uma primeira revolução estética: acaba a hegemonia de um parâmetro musical sobre os demais. Na música popular brasileira anterior à Bossa Nova, toda a ênfase era dada à melodia. Havia mesmo uma preocupação em que a melodia pudesse ser fácilmente entendida e memorizada; por isso a harmonização era geralmente simples e consonante, como que para não “aparecer” mais que a melodia, e para não dificultar sua compreensão.

“Na Bossa Nova, procura-se integrar melodia, harmonia, ritmo e contraponto na realização da obra, de maneira a não se permitir a prevalência de qualquer deles sobre os outros demais, o que tornaria a composição justificada somente pela existência do parâmetro posto em evidência.” [3]

Outro traço significativo do movimento é que embora ele tenha revolucionado tanto a escuta como o fazer musical, ele demonstra grande respeito à tradição da música popular brasileira anterior, com frequentes releituras das obras de compositores como Noel Rosa, Pixinguinha, Assis Valente, Ari Barroso, Dorival Caymmi e muitos outros.

Há uma clara influência do jazz (com direito a uma composição, de Carlos Lyra, que tem este nome e faz uma bem-humorada crítica a esta influência). Mas embora a Bossa Nova use recursos do jazz (principalmente do be-bop), estes são adaptados a ela - não há uma tradução direta. O que existe é uma apropriação, uma recriação, uma reciclagem, um diálogo que se tornou bi-direcional, de tal forma que hoje em dia a Bossa Nova influencia não só o próprio jazz mas também a música pop e latina em geral.

Melodia

Tipicamente mais sofisticadas do que nas canções “antigas”, algumas composições têm melodias inusitadas, fortemente não-diatônicas (Nós, de Johnny Alf ou o emblemático Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendonça). Outras têm melodias simples, porém usando grande complexidade rítmica (Adriana, de Roberto Menescal e Lula Freire, que é um samba em 5/4, ou Batida Diferente, de Durval Ferreira e Mauricio Einhorn). Há ainda composições onde a melodia é intencionalmente pouco variada para que seja valorizada a estrutura harmônica acentuadamente ativa, o que enriquece a textura da obra (Samba de uma nota só, de Tom Jobim e Newton Mendonça, ou Águas de Março, de Tom Jobim).

Harmonia

A classificação tradicional dos acordes como consonantes ou dissonantes dá lugar aos conceitos de maior ou menor tensão harmônico-tonal. Na verdade, os acordes consonantes passam a ser, quase sempre, evitados e são substituídos por seus equivalentes mais “tensos”. Há, portanto, um uso generalizado de acordes sensivelmente mais alterados do que os empregados na música popular brasileira anterior. Neste aspecto fica bastante nítida a já mencionada influência do jazz e do be-bop.

Temos também o uso frequente de acordes de empréstimo modal, como na cadência I 7M - bVII 7M (tônica - sétimo grau abaixado), voltando novamente à tônica (como em Dindi, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, Menina Feia, de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini, ou Faz parte do meu show, de Cazuza e Renato Ladeira), onde o acorde sobre o sétimo grau abaixado tem função subdominante; ou então vemos o acorde menor, construído sobre o quinto grau da escala, ser usado com função dominante (O amor é chama, de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle).

Ritmo

Os acordes (principalmente em obras para piano e/ou violão) passam a desempenhar dupla função: harmônica (dão a orientação e a sustentação harmônica) e percussiva, sublinhando as batidas rítmicas. Na música popular brasileira tradicional, estas duas funções existiam, mas não coexistiam - a partir da Bossa Nova é que elas se integram na mesma entidade-acorde.[4] A rigor, a questão rítmica permeia toda a estética da Bossa Nova: a própria melodia pode ser estruturada segundo configurações derivadas das células rítmicas que caracterizam a “batida da Bossa Nova” (um caso típico é o já mencionado Samba de uma nota só).



Aspectos literários

As letras das músicas passam a ser valorizadas não só pelas idéias (significado) mas também pela sua sonoridade (significante). A palavra ganha assim um outro valor de representação, ou de individualidade sonora (Doralice, de Dorival Caymmi e Antonio Almeida, ou Só danço samba, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes) .

Perdem lugar, também, as imagens rebuscadas, o lirismo exagerado, as inversões na ordem da frase. Procura-se uma linguagem mais próxima do coloquial, um lirismo mais intimista e naïve (Corcovado, de Tom Jobim, ou Ela é Carioca, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes).

Há ainda as letras que descrevem as canções, comentam o percurso da melodia, machadeanamente fazendo metalinguagem (é o caso de Samba de uma nota só e Desafinado, ambas de Tom Jobim e Newton Mendonça, ou Bim Bom, de João Gilberto).



Interpretação

“Com a Bossa Nova, a interpretação no canto estava sofrendo uma profunda mutação. Reavaliando a noção de “voz bonita”, a Bossa Nova despojou-a dos vibratos, do empolamento, da impostação, valorizando, a partir da década de 60, um canto mais intimista, quase minimalista, cujo porta-estandarte seria João Gilberto, na linha de precursores como Cyro Monteiro, Mário Reis, Geraldo Pereira e até Noel Rosa (que justamente por isso nunca fez sucesso como cantor em sua época).” [5]

Tom Jobim dizia que a concepção do canto na Bossa Nova é “cool”. Isto quer dizer cantar sem procura de efeitos ou arroubos melodramáticos, sem demonstrações de virtuosismo, sem malabarismos. A “voz cheia”, “empostada”, o “canto soluçado”, a “lágrima na voz”, são recursos rejeitados enfaticamente pela Bossa Nova. O cantar se aproxima da fala normal, cotidiana, e se afasta definitivamente da estética do bel canto. Evitam-se os exageros, as hipérboles interpretativas, os efeitos dinâmicos (agudos gradiloquentes, fermatas, arrebatamentos). Os ouvintes acostumados ao estilo tradicional muitas vezes acusavam os novos cantores de “não terem voz”. Uma das melhores respostas a esta afirmação é, a nosso ver, a de Newton Mendonça em Desafinado, no verso:

“Se você insiste em classificar

Meu comportamento de anti-musical,

Eu, mesmo mentindo, devo argumentar:

Isto é Bossa Nova, isto é muito natural...”

É bom lembrar que para fazermos apresentações e gravações que usassem este tipo de sonoridade mais contida, ou minimalista, foi preciso contarmos com o desenvolvimento da tecnologia de amplificação de voz. Como os equipamentos mais antigos não dispunham de grande potência e nem de periféricos como o reverberador e o equalizador, era indispensável que o cantor projetasse a voz energicamente, por sobre o conjunto ou orquestra que o acompanhava, criando o efeito “vozeirão” - ou então a platéia do teatro não conseguiria ouvi-lo.

Talvez este fato tenha contribuído para outra mudança: antes da Bossa Nova, o cantor se colocava em posição de absoluto destaque frente ao instrumento ou grupo que o acompanhava; na Bossa Nova o que há é uma equipe, onde frequentemente os cantores são também instrumentistas (João Gilberto, Dick Farney, Johnny Alf) e onde não há (pelo menos teoricamente) muito espaço para personalismos e estrelismos. Sobrepõe-se o interesse da realização final ao da afirmação individual. O cantor não mais se opõe como solista à orquestra: ele agora participa da elaboração musical, e ambos se integram, se conciliam, sem grandes elementos de contraste.

Assim, reconhece-se na interpretação uma parte da própria composição musical. O intérprete da Bossa Nova será portanto, na realidade, um co-participante da realização. Isso é análogo ao que acontece com o jazz, onde a improvisação é uma exigência. Cantar Bossa Nova exatamente como está escrito na partitura é considerado erro de interpretação, erro de estilo.

O cantor pode também usar o scat singing, recurso típico dos cantores de jazz, onde se fazem contrapontos ou livres improvisações sem utilizar a letra das canções, que são substituídas por sílabas.



Considerações Finais

Assim como o jazz, que a influenciou, a Bossa Nova pode ser considerada uma linguagem, uma maneira de pensar e fazer música. Por ser uma concepção musical não redutível a um determinado gênero, comporta manifestações variadas: sambas (Tem dó, de Baden Powell e Vinícius de Moraes), marchas (Marcha da quarta-feira de cinzas, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes), valsas (Luiza, de Tom Jobim), serestas (O que tinha que ser, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes), beguines (Oba-lá-lá, de João Gilberto) etc.

Temos ainda a possibilidade de interação entre diversos gêneros, como prova o histórico álbum onde Frank Sinatra interpreta canções de Tom Jobim (como Corcovado) ao lado de standards americanos (como I concentrate on you, de Cole Porter), todas usando a sonoridade e o estilo da Bossa Nova.

Não pode, portanto, o movimento ser identificado apenas por um parâmetro (seja musical, literário ou interpretativo), mas sim pela articulação de vários deles.



Bibliografia

BRITO, Brasil Rocha: Bossa Nova, in Balanço da Bossa e Outras Bossas. Campos, Augusto de (org.), São Paulo,1986, Editora Perspectiva (1a. ed. 1968)

CASTRO, Ruy: Chega de Saudade, a História e as Histórias da Bossa Nova - São Paulo, 1990, Editora Companhia das Letras

DREYFUS, Dominique: O Violão Vadio de Baden Powell - São Paulo, 1999, Editora 34

MEDAGLIA, Júlio: Balanço da Bossa Nova, in Balanço da Bossa e Outras Bossas. Campos, Augusto de (org.), São Paulo,1986, Editora Perspectiva (1a. edição em 1968)

OBRAS DE REFERÊNCIA: Songbooks da Editora Lumiar: Bossa Nova, em 5 volumes; Tom Jobim, em 3 volumes; Carlos Lyra, em 1 volume


[1] CASTRO, Ruy - op. cit.

[2] MEDAGLIA, Julio - op. cit, p. 70

[3] BRITO, Brasil Rocha - op. cit, p. 22

[4] BRITO, Brasil Rocha - op. cit, p. 23

[5] DREYFUS, op. cit, p. 85


Por Diana Goulart - trabalho para a disciplina Cultura Brasileira do Curso de Pós-Graduação em Educação Musical no Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro - 2o. semestre de 2000